Problema Resolvido

O texto abaixo foi retirado da prova de Exatas do vestibular da Universidade Federal de Mato grosso do Sul (ano 2002, segunda etapa, manhã).

2002, UFMS

Solução (por Carlos César de Araújo).

Discussão preliminar

Devido ao contraste entre “maior” e “menor”, o significado da frase “o maior inteiro menor ou igual a x” pode não se revelar claramente num primeiro contato. (Compare com o Problema Resolvido 8 desta seção.) Uma formulação gramaticalmente superior seria

“o maior inteiro que é menor ou igual a x”.

Ou seja, o piso de x é o maior inteiro que satisfaz a propriedade de ser menor ou igual a x. Uma formulação ainda melhor resulta da observação de que o conjunto dos inteiros que são menores ou iguais a x é © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César. Então,

© 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César,

onde “max” significa “o maior elemento de”. Por igual modo,

© 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César,

onde “min” significa “o menor elemento de”. Embora nem todo conjunto de números reais tenha máximo ou mínimo, é intuitivamente óbvio que © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César tem máximo. (Aliás, pode-se provar que isto é equivalente ao axioma de indução em © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César. Veja a seção Lógica Matemática.)

Exercício 1

Mostre que a definição de © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César é equivalente à seguinte afirmação:

© 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César é o número © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César tal que © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César.

Análise das opções

Examinemos cada uma das cinco afirmações da questão.

(001) afirma que se © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César, então © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César. Correto. Pois suponha que x é um inteiro. Então os inteiros © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César são © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César, dos quais o menor é o próprio x. Portanto, © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César. Analogamente, os inteiros © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César são © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César, dos quais o maior é x. Isto mostra que © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César. Essas duas conclusões nos dão © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César.

(002) é falsa. O motivo é o seguinte. Recorde-se que a imagem de uma função é o conjunto das imagens dos elementos do seu domínio. No caso das funções piso e teto, o domínio é © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César e as imagens de um número real por essas funções são números inteiros. Ou seja, suas imagens estão contidas em © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César. Mas, conforme vimos na discussão de (001), todo inteiro é imagem de um número real por essas funções. Portanto, as imagens das funções piso e teto são o conjunto © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César dos inteiros.

(004) é falsa. De acordo com a definição inicial de piso, © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César é o maior inteiro n para o qual © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César. Dito de outro modo, © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César é o maior inteiro n tal que © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César. Uns poucos cálculos mostram que © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César. Segue-se que © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César.

(008) é verdadeira. Mais precisamente, © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César, seja qual for © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César. Podemos ver isto mais fácil e formalmente a partir da caracterização dada no Exercício 1 (acima), em virtude da qual basta verificarmos se a condição

© 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César

é satisfeita para © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César, com © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César. Assim, suponha que © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César. Então é claro que © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César (como soma de dois inteiros). Agora, façamos © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César em © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César; o resultado é

© 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César.

Essa condição é verdadeira? Sim, pois, após subtrairmos n, obtemos a condição equivalente

© 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César,

que é sempre verdadeira em virtude do Exercício 1.

(0016) é falsa. Pois © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César, logo © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César. Assim, o conjunto dos inteiros maiores ou iguais a © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César é © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César, e o menor elemento desse conjunto é © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César. Portanto, © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César.

Exercício 2

Vimos acima que se © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César, então © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César. Mostre que vale a recíproca: se © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César, então © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César.

Investigando com o computador

Todos os softwares divulgados neste site dispõem das funções piso e teto, cujas denominações em inglês são floor e ceiling, respectivamente. No Winplot, por exemplo, obtemos o gráfico de © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César entrando com a expressão floor(x) na caixa de equações explícitas. (No gráfico abaixo, os extremos abertos e fechados dos segmentos foram criados como duas famílias de pontos.)

A função piso - made with Winplot (2003)

Para o gráfico de © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César, deve-se digitar ceil(x). (Essa abreviação de ceiling é também usada no GrafEq, mas não no DPGraph e no Mathematica. Note-se que ceiling é um substantivo derivado do verbo ceil.)

Considerações finais

Conforme mostramos nos capítulos XIX e XX do CD Números, as funções piso e teto são formidavelmente úteis, e mereceriam um lugar de destaque já no ensino médio. Parabenizamos a UFMS pela excelente apresentação dessas funções numa prova de vestibular. Mas discordamos dos autores da questão quando afirmam que as notações de Iverson facilitam a compreensão dessas funções.

Até a década de 1960, o “maior inteiro menor ou igual a x” era comumente denotado por © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César (lê-se “colchete de x”) e identificado com a “parte inteira de x”. Por volta de 1957, o canadense Kenneth E. Iverson (1920-), então na Universidade de Harvard, desenvolveu uma escrita simbólica para a expressão concisa de conceitos matemáticos, da qual emergiram as notações © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César e © 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César. Tomadas em conjunto, elas realçam a dualidade das definições de piso e teto (uma se obtém da outra pela substituição dos termos “maior” e “menor” por “menor” e “maior”, respectivamente). Outra vantagem é que os semicolchetes não padecem da ambigüidade dos colchetes tradicionais da notação mais antiga, conforme discutimos no CD Números. Todavia, é evidente que a mera substituição de "© 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César" por "© 2002-2003, Matemática Para Gregos & Troianos - Carlos César" em nada altera a complexidade intrínseca do conceito “o maior inteiro menor ou igual a x”.

Iverson apresentou sua escrita simbólica no livro A Programming Language, que ele publicou em 1962. Dois anos depois, suas idéias — incluindo o próprio título do livro! — foram utilizadas pela IBM no desenvolvimento de uma linguagem de programação de altíssimo nível chamada APL. Talvez interesse aos leitores deste site saber que vários aspectos da APL influenciaram Stephen Wolfram quando da criação do Mathematica, conforme, aliás, foi (discretamente) admitido por Wolfram no prefácio do seu recente e polêmico livro A New Kind of Science.


Carlos César de Araújo, 4 de setembro de 2003

NOTA. Kenneth Iverson faleceu em 19 de outubro de 2004 (quase um ano após a publicação desta página).

Carlos César de Araújo, 16 de novembro de 2006