Em 1998, algum tempo após ter publicado o meu artigo Um Salto Quântico no Infinito no Jornal Estado de Minas (reproduzido na seção História deste site), fui informado que matéria semelhante, também falando sobre a teoria do infinito de Georg Cantor, aparecera nas páginas da SUPERINTERESSANTE. De imediato, fiquei superinteressado, pois não sabia que partes tão abstratas da Matemática — normalmente guardadas entre muros de universidades — pudessem atrair a atenção daquela conceituada revista de popularização científica.
O artigo sobre Cantor apareceu na edição de março de 1994 da SUPERINTERESSANTE (número 3, ano 8), conforme constatei ao adquirir o conhecido CD-ROM que presenteou o público com dez anos da revista. Escrito por Flávio Dieguez e intitulado O homem que colocou o infinito no bolso, o texto resume a figura contraditória de Cantor, fala sobre a sua invenção do álefe-zero (o menor número infinito), destaca rapidamente a relevância do seu trabalho para a teoria dos fractais e entremeia o assunto com uma rápida incursão histórica que vai dos paradoxos de Zenão ao surgimento da Análise nas mãos de Cauchy. Um belo trabalho, como tantos outros que li do mesmo autor.
Entretanto, notei dois erros importantes no artigo. Não sei se foram percebidos por algum leitor assíduo ou se o autor deles tomou conhecimento posteriormente. O primeiro é um equívoco histórico. Flávio afirma que
"o francês Augustin-Louis Cauchy (1789-1857), criou o conceito de limite".
Minha participação no Historia-Matematica (veja a seção História deste site) fortaleceu minhas convicções de que qualquer julgamento preciso sobre quem "criou" o quê em Matemática é extremamente arriscado. De qualquer modo, existe farta documentação histórica para comprovar que o brilhante Cauchy não "criou" o conceito de limite. Muito antes dele, a complicada idéia de "limite" já incomodava os sapatos de matemáticos como John Wallis (1616-1703) e James Gregory (1638-1675), dois precursores do Cálculo de Newton e Leibniz. Jean Le Rond d´Alembert (1717-1783) foi um dos primeiros a perceber a importância do conceito para os fundamentos do Cálculo ao escrever um artigo intitulado "Limit" para a famosa Encyclopédie (1751-1765). Finalmente, a própria abreviação "lim", hoje firmemente estabelecida, já havia sido usada por um matemático suíço chamado Simon L´Huiller — três anos antes do nascimento de Cauchy. Todavia, Cauchy foi, indubitavelmente, um dos primeiros matemáticos a fornecer uma definição de limite aceitável pelos padrões de rigor atuais, e muito contribuiu para o movimento de aritmetização da Análise com base no trabalho dos seus antecessores.
O segundo erro do artigo de Flávio Dieguez é mais crítico e interessante, uma vez que toca o cerne da idéia mesma de infinito. Ocorre no último parágrafo, mais precisamente no seguinte trecho:
Se o número dos inteiros é álefe-zero, qual será o número infinito dos números reais? O matemático alemão David Hilbert (1862-1943), homenageado como o maior deste século, pensou ter provado que seria 2 elevado a álefe-zero. Cantor, pessoalmente, se inclinava fortemente para esse resultado, mas a prova não se sustentou.
Flávio se refere aqui ao grande drama de Cantor: ele nunca conseguiu identificar qual dos seus números transfinitos seria o cardinal do conjunto dos números reais. De acordo com o trecho acima, Cantor teria acreditado que esse cardinal seria
(2 elevado a álefe-zero), e Hilbert teria tentado uma demonstração, mas sem sucesso.
Na verdade, Cantor publicou um longo artigo em 1895 que contém, inter alia, uma prova de que o "número infinito dos números reais" (no dizer de Flávio) é precisamente 2 elevado a álefe-zero, fato que ele expressou em símbolos como segue:
onde (na notação de Cantor) indica o cardinal do intervalo
. Observe que
a fórmula de Cantor não comprova diretamente que
é o cardinal de
. Mas este fato vem como um simples corolário, pois é fácil
apresentar bijeções entre
e
.
Em resumo, Cantor realmente provou que
.
Contudo, isto ainda não estabelece que o cardinal de
seja um álefe, e tampouco qual dos álefes
Um teorema famoso de Cantor exclui a possibilidade do cardinal de ser o álefe-zero. O palpite de Cantor, que ele e seus sucessores, incluindo Hilbert, tentaram provar, foi que
,
isto é, que o "número infinito dos números reais" é álefe-um. Essa conjectura de Cantor é hoje chamada Hipótese do Contínuo, um dos temas do meu artigo já citado. O status dessa hipótese é extremamente complicado. Com base no Axioma da Escolha, Zermelo provou que o cardinal de tem que ser um álefe. Todavia, são necessários axiomas muito mais problemáticos para provar que esse álefe é o álefe-um. Sem pressupor nenhum axioma além dos "indisputáveis" (incluindo o da Escolha), a questão é simplesmente indecidível: vale em alguns mundos possíveis, mas é falsa em outros.
Referências e Sugestões Para Leitura
[1]
Cantor, G. Contributions to the Theory of Transfinite Numbers.
Dover Publications, Inc., New York, 1952.
[2] Kline, Morris. Mathematics, The Loss of Certainty. University Press, NY, 1980.
Carlos César de Araújo, 20 de agosto de 2002